Waldyr Carvalho Luz
“Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e os portais do Hades não prevalecerão sobre ela.” (Mt 16.18)
Nenhum outro texto bíblico, tem dado ensejo a tantas e tão variadas interpretações, motivo de polêmicas e ilações improcedentes e absurdas. Encrava-se ela no contexto dessa preciosa perícope que se estende do verso 13 ao 20, e deve ser entendida à luz das circunstâncias do momento e em termos do propósito visado pelo Senhor Jesus.
Aproximava-se o fim do ministério terreno de Jesus. Antevia Ele o iminente desfecho que o aguardava. Sua meta era preparar os ingênuos e desavisados apóstolos e conscientizá-los, quanto à real concepção de Sua pessoa teantrópica, e, também, quanto à missão que se lhes reservava.
Retirou-se Jesus para as bandas da Palestina, à região da cidade de Cesaréia de Filipe. Perguntou-lhes quem dizia o povo ser Ele? Ouve variadas concepções e, então, interroga-os: “Mas vós, quem me dizeis ser?” O árdego Pedro declara sem rebuços: “Tu és o Messias (Cristo, literalmente, Ungido), o Filho do Deus vivo”. Tinham, pois, os apóstolos, já que a afirmação de Pedro expressava o tácito sentir de todo o grupo discipular, plena e exata convicção de Sua pessoa divino-humana, de Sua messianidade, da realidade do reino de Deus, da verdade do Evangelho comunicado, da esperança realizada do Israel espiritual. Então Jesus declara: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e os portais do Hades não prevalecerão sobre ela”, uma tríade de clausulas conexas, fundamental no reconhecimento senhorial de Jesus, base e fundamento da fé, conditio sine qua non do real discipulado cristão. Que desejava Jesus assim dizer?
“Tu és Pedro”
No grego: sy eî Pétros. Onde a ênfase? No pronome? No verbo? No predicado? Se no pronome, conferia Jesus dignidade especial ao apóstolo, autoridade única, superioridade, pretenso primado. No contexto, nada autoriza esta interpretação. Se no verbo, cabe indagar: deve ser tomado no sentido ontológico, existencial, ou simplesmente ligacional, como forma de predicação? Aquela acepção não parece relevante, nem apropriada, logo, é meramente expletivo, relacional. Se no predicado, há que perguntar-se: é o apelativo onomástico, o nome ou apelido designativo da pessoa, ou o sentido implicitado nesse nome, que Jesus lhe atribuiu desde sua chamada, que lhe passou a ser o “título” reconhecido? Dada a conexão com a clausula imediata, a segunda destas acepções é que parece preferível. Jesus ressaltava a firmeza de caráter, o vigor da personalidade, a férrea natureza da vontade, a intrépida dedicação, agora galvanizados pela revelação divina (v.17), que o constituía a primeira pedra-assente do edifício da igreja, basilada na fé em Jesus. Nesse caso, não é propriamente o Pedro-pessoa, mas o Pedro-confessante, não a individualidade distinta, mas a relação vital com o Senhor da igreja, não a pessoa, mas sua qualidade, não a autoridade, mas a convicção. Que a prerrogativa de “atar” (ou “ligar”) e “desatar” (ou “desligar”) e o poder das “chaves” (v.19), simbólicos da autoridade arbitral que o rabino conferia ao discípulo ao concluir este o seu aprendizado, aliás, condicionados pelo tempo verbal (futuro perfeito perifrástico), não eram exclusividade de Pedro, prova-o o verso 18, do capítulo 18 deste mesmo evangelho, em que o privilégio ligacional/desligacional é conferido a todo Colégio Apostólico, como se vê dos próprios verbos, os mesmos deste texto, além do pronome hymîn — a vós, na 2ª pessoa plural.
“E sobre esta pedra edificarei a minha igreja”
Kaì epì taúte(i) tê(i) pétra(i) oikodoméso mou tèn ekklesían. Que estava Jesus a dizer com estas palavras: “e sobre esta pedra”? Que pedra era essa? Que tinha ela a ver com Pedro? Certamente Jesus falava em aramaico. Nessa língua, ambos os termos, Pedro e pedra, são um e o mesmo vocábulo: Kephá, transliterado como Cefas, mas Mateus os distinguiu, mui expressivamente. Então, é evidente que Pedro não é a pedra. Lingüisticamente, pétros é um fragmento, pedaço, porção da pétra, a rocha, a massa pétrea, a sólida e extensa laje, na metáfora de Jesus, de que Pedro seria parte. Linguagem figurada, qual o verdadeiro sentido de pétra? Do contexto parece claro que não se trata de fundamento político, poder e autoridade de senhorio e governo, de dignidade pessoal ou primado pontifício, mas de relacionalidade comungatória, discernimento espiritual, lucidez de crença e firmeza de convicção, polarizada na plena aceitação de Cristo como Senhor, Messias, Salvador. Em outros termos, a pétra é o reconhecimento da unicidade senhorial de Cristo, a igreja calcada nessa bendita convicção, a repousar, em seu modus essendi et operandi, na explícita e absoluta confissão de que Pedro foi o marco inicial.
“Edificarei” (oikodoméso, composto de oîkos — casa, e doméo, cognato de démo — construir), futuro do indicativo, metafórico, comparada a igreja a um edifício, ainda por ser erguido. Não elaborara Ele, um projeto ou esquema organizacional da igreja, que só viria a assumir feição objetiva ou concreta na ação do Espírito Santo no Pentecoste, o divino Paracleto a dirigir os apóstolos em sua consolidação.
“A minha igreja” (mou tèn ekklesían): específica, distintiva, peculiar. Que, porém, significa o termo igreja nesta passagem? Introduzido já desde a Septuaginta, traduzia os verbetes hebraicos qahal e ‘eda(h), que designavam a congregação do povo de Israel, provindo do verbo kaléo — chamar, e a preposição ek — fora de, na forma substantiva ekklesía (latim ecclesia, evoluído para o vernáculo igreja), aplicado a assembléia de representantes do povo. A comunidade dos fiéis seguidores de Jesus, em sua identificação com Ele, não uma organização, nem santuário ou templo, que só depois do segundo século veio a existir legalmente. Os evangelhos, não falam de igreja, senão neste texto e no capítulo 18, verso 18 (duas vezes), mas de o reino de Deus (em Mateus, quase sempre o reino dos céus).
“E os portais do Hades não prevalecerão sobre ela”
Do grego: Kaì pýlai há(i)dou ou katischýsousin autês. Linguagem figurada, agora em termos de um reduto fortificado, uma fortaleza imponente, com suas portas (pýlai) monumentais e, por certo, suas muralhas inexpugnáveis, como eram as cidades fortes da época. Mas, e Hades (há(i)des), impropriamente traduzido como inferno? Quer entre os gregos, de onde procede o termo, quer entre os judeus (tradução do vocábulo She'ôl), era o lugar onde subsistiam os mortos, justos ou ímpios, metáfora para a morte e seu poder aniquilátorio.
“Não prevalecerão sobre ela” (ou katischýsousin autês): o verbo katischýo é composto da verbalização do substantivo ischýs — força, poder, e da preposição integrante katá, literalmente: abaixo ou contra, intensiva, devendo traduzir-se por: superar, suplantar, prevalecer sobre. É a afirmação de que o pequeno rebanho, pobre e inexpressivo, sob a direção de homens humildes, não seria aniquilado pela morte, isto é, a igreja, o povo de Deus, jamais deixará de subsistir até a consumação dos séculos.
A exegese sadia, objetiva, imparcial deste texto, em seu contexto, autorizará estas precisas ilações quanto à igreja:
Sua constituição estrutural: Compõem-na Pedros, isto é, individualidades pétreas, pessoas de fé inabalável e testemunho irredutível a confessar Jesus Cristo como Soberano e Senhor de sua consciência, vitalizada pela graça de Deus e iluminada pelo evangelho puro;
Sua dinâmica operacional: Não embasada na força, nos poderes humanos, nos recursos materiais, na eficiência de máquina administrativa e organização modelar, mas na potência da fé em Cristo, no vigor do testemunho cristão, na fidelidade a Deus, na obediência integral ao preceitos do Senhor;
Sua imperecibilidade existencial: A garantia solene de Cristo de que os Seus, sofreriam ante inimigos e perseguidores brutais, mas jamais seria destruída, desafiando os séculos, testemunhando eficazmente.
Os portais da morte não aniquilarão, jamais, Sua igreja, pois poderoso é Deus, que em tudo a escudará, preservará, abençoará, fará triunfante. Amém.
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Sobre o autor: Waldyr Carvalho Luz é professor aposentado da UNICAMP e do Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, SP.
Fonte: Revista Ultimato.
quinta-feira, 13 de janeiro de 2011
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