Sinclair Ferguson
Embora tenha sido provocada pelas indulgências vendidas por Johannes Tetzel, a primeira proposição que Lutero ofereceu para debate público, em suas Noventa e Nove Teses, pôs o machado à raiz da árvore teológica da Idade Média. A primeira proposição afirmava: “Quando nosso Senhor e Mestre, Jesus Cristo, disse: ‘Arrependei-vos’, Ele pretendia dizer que toda a vida do crente deve ser caracterizada por arrependimento”. Fundamentado no Novo Testamento Grego editado por Erasmo, Lutero chegou à compreensão de que a tradução penitentiam agite (“fazei penitência”), da Vulgata Latina, em Mateus 4.17, interpretava de maneira completamente errada o significado das palavras de Jesus. O evangelho não exige penitência, e sim uma mudança radical na maneira de pensar e uma profunda transformação de vida. Mais tarde, Lutero escreveria para Staupitz a respeito desta brilhante descoberta: “Eu me arrisco a dizer que estão errados aqueles indivíduos que tornam mais importante a ação proposta pelo latim do que a mudança de coração transmitida pelo grego”.
Não é verdade que temos perdido de vista esta nota que era tão proeminente na teologia reformada? Faremos muito bem se resgatarmos o conceito teológico de Lutero. Por muitas razões importantes, os evangélicos precisam reconsiderar a centralidade do arrependimento em nossa maneira de pensar a respeito do evangelho, da igreja e da vida cristã.
Uma de nossas grandes necessidades é a habilidade de perceber algumas das direções às quais o evangelicalismo está se encaminhando ou talvez, mais exatamente, se desintegrando. Precisamos desesperadamente da perspectiva que a História da Igreja nos proporciona.
Mesmo no período de minha própria vida cristã — no espaço de tempo entre a minha adolescência, na década de 1960, e os meus quarenta anos, na década de 1990 —, houve uma ampla mudança no evangelicalismo. Muitas “posições doutrinárias” que constituíam o ensino evangélico padrão, depois de somente três décadas, são consideradas como reacionárias ou mesmo antiquadas.
Se levarmos em conta a perspectiva da História, encaramos a possibilidade alarmante de que trevas medievais podem estar se avultando no evangelicalismo. Seremos capazes de detectar, pelo menos como uma tendência, atividades no meio do evangelicalismo que se assemelham à vida da igreja medieval? A possibilidade de uma Nova Babilônia ou (mais exatamente, nas palavras de Lutero) do Cativeiro Pagão da Igreja se mostra mais perto do que podemos crer.
Considere estas cinco características da igreja medieval que, em vários graus, estão evidentes no evangelicalismo contemporâneo.
Mesmo no período de minha própria vida cristã — no espaço de tempo entre a minha adolescência, na década de 1960, e os meus quarenta anos, na década de 1990 —, houve uma ampla mudança no evangelicalismo. Muitas “posições doutrinárias” que constituíam o ensino evangélico padrão, depois de somente três décadas, são consideradas como reacionárias ou mesmo antiquadas.
Se levarmos em conta a perspectiva da História, encaramos a possibilidade alarmante de que trevas medievais podem estar se avultando no evangelicalismo. Seremos capazes de detectar, pelo menos como uma tendência, atividades no meio do evangelicalismo que se assemelham à vida da igreja medieval? A possibilidade de uma Nova Babilônia ou (mais exatamente, nas palavras de Lutero) do Cativeiro Pagão da Igreja se mostra mais perto do que podemos crer.
Considere estas cinco características da igreja medieval que, em vários graus, estão evidentes no evangelicalismo contemporâneo.
1. Arrependimento
O arrependimento tem sido considerado, de maneira cada vez mais crescente, como um ato único, divorciado de uma restauração da piedade que se estende por toda a vida do crente.
Existem razões complexas para isso — nem todas desta época — que não podem ser exploradas neste breve artigo. Entretanto, isto é evidente: considerar o arrependimento como um ato isolado e completo, no início da vida cristã, tem sido um dos princípios mais importantes do evangelicalismo moderno. Infelizmente, os crentes têm desprezado a teologia das igrejas que possuem uma confissão de fé histórica. Essa atitude tem produzido uma geração que olha para trás e vê a base da sua salvação em um ato único, separado de suas conseqüências. Assim, hoje, a chamada para “vir à frente” assumiu o lugar do antigo sacramento da penitência. Deste modo, o arrependimento tem sido divorciado da regeneração verdadeira, e a santificação está separada da justificação.
Existem razões complexas para isso — nem todas desta época — que não podem ser exploradas neste breve artigo. Entretanto, isto é evidente: considerar o arrependimento como um ato isolado e completo, no início da vida cristã, tem sido um dos princípios mais importantes do evangelicalismo moderno. Infelizmente, os crentes têm desprezado a teologia das igrejas que possuem uma confissão de fé histórica. Essa atitude tem produzido uma geração que olha para trás e vê a base da sua salvação em um ato único, separado de suas conseqüências. Assim, hoje, a chamada para “vir à frente” assumiu o lugar do antigo sacramento da penitência. Deste modo, o arrependimento tem sido divorciado da regeneração verdadeira, e a santificação está separada da justificação.
2. Misticismo
O cânon da vida cristã tem sido procurado, de maneira crescente, em uma voz viva “inspirada pelo Espírito Santo”, na igreja, ao invés de ser buscado na voz do Espírito ouvida nas Escrituras. O que antes era apenas uma tendência mística se tornou um dilúvio. Mas qual a relação disso com a igreja da Idade Média? Apenas esta: toda a igreja medieval agia com base nesse mesmo princípio, embora eles o expressassem de maneira diferente — o Espírito Santo fala além das Escrituras; o crente não pode conhecer a orientação detalhada da parte de Deus, se tentar depender exclusivamente de sua própria Bíblia.
E isso não é tudo. Uma vez que a doutrina da “voz viva” do Espírito Santo é introduzida, ela é seguida inevitavelmente como sendo o cânon da vida cristã.
Este ponto de vista (a Palavra inspirada + uma voz viva = revelação divina) se encontrava no âmago do tatear na escuridão da igreja medieval em busca do poder do evangelho. Ora, no final do segundo milênio, estamos à beira — e talvez mais do que à beira — de sermos dominados por um fenômeno semelhante. Naquela época, o resultado foi uma fome por ouvir e entender a Palavra de Deus; e tudo foi realizado sob o pretexto de buscar aquilo que o Espírito Santo estava realmente dizendo à igreja. E o que podemos dizer sobre os nossos dias?
E isso não é tudo. Uma vez que a doutrina da “voz viva” do Espírito Santo é introduzida, ela é seguida inevitavelmente como sendo o cânon da vida cristã.
Este ponto de vista (a Palavra inspirada + uma voz viva = revelação divina) se encontrava no âmago do tatear na escuridão da igreja medieval em busca do poder do evangelho. Ora, no final do segundo milênio, estamos à beira — e talvez mais do que à beira — de sermos dominados por um fenômeno semelhante. Naquela época, o resultado foi uma fome por ouvir e entender a Palavra de Deus; e tudo foi realizado sob o pretexto de buscar aquilo que o Espírito Santo estava realmente dizendo à igreja. E o que podemos dizer sobre os nossos dias?
3. Poderes Sagrados
A presença divina era trazida à igreja através de um indivíduo com poderes sagrados, depositados em sua pessoa e transmitidos por meios físicos.
Hoje, o correspondente de tal indivíduo pode ser visto em todos os lugares onde as pessoas assistem televisão. Temos de reconhecer que não é Jesus que está sendo oferecido por meio das mãos de um sacerdote; é o Espírito Santo quem está sendo outorgado por meios físicos (aparentemente, à vontade), pela instrumentalidade de um novo sacerdote evangélico. A santidade não é mais confirmada pela beleza do fruto do Espírito, e sim pelos sinais que são predominantemente físicos.
O que deveríamos achar alarmante a respeito do evangelicalismo contemporâneo é a amplitude com que somos impressionados pelo bom desempenho de tais sacerdotes, ao invés de sermos impressionados por sua piedade. Os reformadores estavam familiarizados com fenômenos semelhantes a este. Na verdade, uma das principais acusações feitas contra os reformadores pela Igreja Católica Romana era que eles não tinham realmente o evangelho, pois lhes faltava os milagres físicos.
Hoje, o correspondente de tal indivíduo pode ser visto em todos os lugares onde as pessoas assistem televisão. Temos de reconhecer que não é Jesus que está sendo oferecido por meio das mãos de um sacerdote; é o Espírito Santo quem está sendo outorgado por meios físicos (aparentemente, à vontade), pela instrumentalidade de um novo sacerdote evangélico. A santidade não é mais confirmada pela beleza do fruto do Espírito, e sim pelos sinais que são predominantemente físicos.
O que deveríamos achar alarmante a respeito do evangelicalismo contemporâneo é a amplitude com que somos impressionados pelo bom desempenho de tais sacerdotes, ao invés de sermos impressionados por sua piedade. Os reformadores estavam familiarizados com fenômenos semelhantes a este. Na verdade, uma das principais acusações feitas contra os reformadores pela Igreja Católica Romana era que eles não tinham realmente o evangelho, pois lhes faltava os milagres físicos.
4. Espectadores
A adoração a Deus é apresentada, cada vez mais, como um evento das capacidades sensoriais e visuais, e não como um acontecimento caracterizado por palavras, através do qual nos envolvemos em um profundo diálogo da alma com o Deus triúno.
A atitude predominante do evangelicalismo contemporâneo consiste em focalizar a centralidade daquilo que “acontece” no espetáculo de adoração, ao invés de focalizar aquilo que se escuta na adoração. A estética, quer seja musical, quer seja artística, recebe prioridade acima da santidade. Mais e mais é visto, menos e menos é ouvido. Acontece uma festa dos sentidos, mas existe uma fome do ouvir. O profissionalismo na adoração se tornou um substituto barato e cheio de falhas para o genuíno acesso ao céu. A dramatização, ao invés da pregação da Palavra, se tornou o “Didaquê” da escolha.
Houve um tempo em que apenas quatro palavras causariam arrepios em nossos avós: “Vamos adorar a Deus”. Isto não pode ser dito a respeito dos evangélicos contemporâneos. Agora, tem de haver cores, movimento, efeitos áudio-visuais, etc., pois, de modo contrário, Deus não pode ser conhecido, amado, adorado e crido.
5. Maior significa melhor?
A atitude predominante do evangelicalismo contemporâneo consiste em focalizar a centralidade daquilo que “acontece” no espetáculo de adoração, ao invés de focalizar aquilo que se escuta na adoração. A estética, quer seja musical, quer seja artística, recebe prioridade acima da santidade. Mais e mais é visto, menos e menos é ouvido. Acontece uma festa dos sentidos, mas existe uma fome do ouvir. O profissionalismo na adoração se tornou um substituto barato e cheio de falhas para o genuíno acesso ao céu. A dramatização, ao invés da pregação da Palavra, se tornou o “Didaquê” da escolha.
Houve um tempo em que apenas quatro palavras causariam arrepios em nossos avós: “Vamos adorar a Deus”. Isto não pode ser dito a respeito dos evangélicos contemporâneos. Agora, tem de haver cores, movimento, efeitos áudio-visuais, etc., pois, de modo contrário, Deus não pode ser conhecido, amado, adorado e crido.
5. Maior significa melhor?
O sucesso do ministério é medido pelas multidões e pelos templos enormes, ao invés de ser avaliado por meio da pregação da cruz e da qualidade da vida dos crentes.
Foram os líderes da Igreja Medieval — bispos, arcebispos, cardeais e papas — que construíram as grandes igrejas, ostentando o lema Soli Deo Gloria. Tudo isso foi realizado em detrimento da proclamação do evangelho, da vida do corpo de Cristo como um todo, das necessidades dos pobres e da evangelização do mundo. Por conseguinte, as mega-igrejas não constituem um fenômeno moderno, e sim um fenômeno da Idade Média.
Felizmente, o tamanho ideal de uma igreja e a arquitetura eclesiástica específica são questões irrelevantes. Essa não é realmente a principal preocupação neste artigo. Pelo contrário, nossa principal preocupação é a tendência quase endêmica do evangelicalismo contemporâneo em utilizar tamanho e números como um indicativo de sucesso do “meu ministério” — uma expressão que pode ser admiravelmente contraditória. Temos de suscitar a questão da realidade, da profundidade e da integridade na vida da igreja e do ministério cristão. O intenso desejo por “coisas maiores” nos torna vulneráveis na área material e financeira; e o que é pior: nos torna espiritualmente vulneráveis. Pois dificilmente poderemos declarar àqueles dos quais dependemos materialmente: “Quando o Senhor Jesus disse: ‘Arrependei-vos’, isto significava que toda a vida cristã é uma vida de arrependimento”.
Foram os líderes da Igreja Medieval — bispos, arcebispos, cardeais e papas — que construíram as grandes igrejas, ostentando o lema Soli Deo Gloria. Tudo isso foi realizado em detrimento da proclamação do evangelho, da vida do corpo de Cristo como um todo, das necessidades dos pobres e da evangelização do mundo. Por conseguinte, as mega-igrejas não constituem um fenômeno moderno, e sim um fenômeno da Idade Média.
Felizmente, o tamanho ideal de uma igreja e a arquitetura eclesiástica específica são questões irrelevantes. Essa não é realmente a principal preocupação neste artigo. Pelo contrário, nossa principal preocupação é a tendência quase endêmica do evangelicalismo contemporâneo em utilizar tamanho e números como um indicativo de sucesso do “meu ministério” — uma expressão que pode ser admiravelmente contraditória. Temos de suscitar a questão da realidade, da profundidade e da integridade na vida da igreja e do ministério cristão. O intenso desejo por “coisas maiores” nos torna vulneráveis na área material e financeira; e o que é pior: nos torna espiritualmente vulneráveis. Pois dificilmente poderemos declarar àqueles dos quais dependemos materialmente: “Quando o Senhor Jesus disse: ‘Arrependei-vos’, isto significava que toda a vida cristã é uma vida de arrependimento”.
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