Vincent Cheung
Você pergunta: “Qual é o pagamento?”. E eu respondo: “Verdadeiro pagamento consiste de amigos, felicidade e uma vida longa. Ademais, o trabalho envolve um monte de levantamento de peso, de forma que será um bom exercício e contribuirá para uma vida longa”. Você está convencido? Ou pensa que estou evitando sua pergunta? Minha resposta pode ter algum valor em outro contexto, mas não é relevante para a sua preocupação. Antes, estou impondo outro significado sobre um termo chave, e estou me dirigindo a esse significado. Você pensaria que sou estúpido ou desonesto.
Quando você pergunta sobre o pagamento, você está se referindo ao dinheiro, à quantia de dólares americanos que irei transferir da minha conta para a sua. Sua preocupação não tem nada a ver com verdadeiras riquezas ou o significado profundo da vida. O significado do termo está estabelecido em sua pergunta, e mesmo que o dicionário liste várias outras definições, somente uma importa neste contexto, e essa é aquela que você está usando. Ora, minha resposta parece ridícula: “Verdadeiros dólares americanos consiste de amigos, felicidade e uma vida longa”. Isso é obviamente irrelevante. A resposta verdadeira é: “Não, eu não vou te pagar”.
Quando a mesma palavra é usada com dois significados diferentes, uma ou ambas as palavras podem ser substituídas, quer por palavras diferentes, ou com expressões que representem os significados que se pretende passar com essas palavras. Podemos reproduzir o diálogo dessa forma: “Qual é a quantia de dólares americanos que você me dará?” “Eu lhe darei $0. Contudo, você receberá um tipo diferente de recompensa que consiste de amigos, felicidade e uma vida longa”. Em outras palavras, quando X é usado de duas formas, é sempre possível declarar a questão em termos de Y e Z. Se X é mais apropriadamente associado com um dos dois significados num determinado contexto, então a questão pode ser declarada em termos de X e Y, ou Y e X.
Isso é muito mais claro, mas preciso admitir o fato que te darei $0, embora tente te convencer a trabalhar para mim ao oferecer-lhe outro tipo de motivação. Isso torna a minha posição mais honesta.
Agora considere algo que lemos na Teologia Sistemática de Louis Berkhof. Escreve ele: “Dizem que a doutrina da perseverança é incoerente com a liberdade humana. Mas esta objeção parte da falsa pressuposição de que a verdadeira liberdade consiste na liberdade da indiferença, ou no poder de fazer escolha contrária em questões morais e espirituais.
Contudo, isto é errôneo. A verdadeira liberdade consiste exatamente na autodeterminação rumo à santidade. O homem nunca é mais livre do que quando se move conscientemente em direção a Deus. E o cristão está com essa liberdade pela graça de Deus”.2 Percebe que ele parece dizer algo valioso, mas evita a objeção? Essa é a maneira típica de pensamento entre os reformados. Escolhi esse exemplo pois me deparei com o texto na minha mesa. Há milhares como esse nos escritos reformados, e seria fácil você encontrar um exemplo e fazer a sua própria análise.
Para parafrasear, Berkhof diz: “Dizem que P é incoerente com X. Mas esta objeção parte da falsa pressuposição de que X consiste em Y. Contudo, isto é errôneo. X consiste exatamente em Z. O homem nunca é mais X do que quando ele Z. E o cristão está com Z pela graça de Deus”. Visto que por X o oponente quer dizer Y, podemos deixar isso ainda mais claro se substituirmos a primeira ocorrência de X por Y. Dessa forma: “Dizem que P é incoerente com Y. Mas esta objeção parte da falsa pressuposição de que X consiste em Y. Contudo, isto é errôneo. X consiste exatamente em Z. O homem nunca é mais X do que quando ele Z. E o cristão está com Z pela graça de Deus”. Em outras palavras, a resposta de Berkhof é: “O que você chama de X, eu não entendo como Y, mas como Z”. Tudo bem, mas o que dizer sobre Y? A objeção é que P é incoerente com Y, e Berkhof ignora isso. E se Y é supostamente importante, sem o qual um sistema de teologia não pode existir, então a defesa de Berkhof é um fracasso completo. O oponente diz: “Se Deus é soberano, então o homem não tem rebimboca da parafuseta”.
A resposta reformada é: “A verdadeira liberdade consiste na autodeterminação”. Mas a objeção refere-se à rebimboca da parafuseta. Isso nos prepara para examinar o conteúdo real da objeção. Liberdade é um termo relativo – uma pessoa é livre de algo. O significado que se pretende pela palavra num contexto particular, então, é determinado por aquilo do qual é dito alguém ser livre. Quando o tópico é soberania divina, eleição, regeneração, preservação ou doutrinas semelhantes – isto é, quando o tópico é o controle de Deus – o contraste relevante, ou a coisa com a qual isso parece ser inconsistente, é necessariamente uma liberdade de Deus.
Assim, a questão é: “Eu tenho uma liberdade para pensar, escolher, e agir, num sentido que minha decisão é sempre arbitrária ou que a razão para a minha decisão está sempre inteiramente dentro de mim, à parte de determinação externa, incluindo o decreto e o poder de Deus?” É improdutivo, e compreensivelmente frustrante para os oponentes, dizer: “Mas isso não é o que a Bíblia quer dizer por liberdade”. Chame-a do que quiser, mas isso é o que os nossos oponentes estão perguntando. Tire a palavra liberdade, mas você ainda precisa responder a questão.
Isso é importante porque liberdade, nesse sentido absoluto, é ao que os nossos oponentes se referem quando usam o termo, e eles consideram-na o fundamento necessário para a responsabilidade moral. Redefinir liberdade para eles não responde a questão. A resposta típica é o compatibilismo, ou que o homem tem o poder de autodeterminação. Ele sempre decide de acordo com o seu próprio desejo, sem coerção. Os reformados negam a ideia de liberdade dos seus oponentes, dizendo que ela é mal definida e impossível, e oferece-lhes essa versão como a base para a responsabilidade moral.
Contudo, até mesmo um computador tem esse tipo de liberdade – ele sempre funciona de acordo com o seu programa, e nunca é coagido. Mas o homem é quem escreve o programa, e quem desenvolve o hardware para que o computador funcione de acordo com um programa. Nossos oponentes estão perguntando se o computador pode funcionar sem nenhuma programação, ou se ele pode criar a sua própria programação, ou funcionar além ou até mesmo contra a sua programação. A eles, a resposta reformada é equivalente a dizer que se um computador roda um vírus, então podemos acusá-lo de crime cibernético. O pensamento deles é que se um homem escreve o vírus, e o computador meramente roda esse vírus, então é o homem quem deveria ser culpado do crime. O computador pode ser considerado responsável somente se ele escreveu o vírus por contra própria ou se realizou o mesmo dano sem um vírus. Se estamos falando sobre soberania divina, então liberdade deve ser definida desta forma: uma liberdade com relação ao controle divino. E se essa liberdade é o fundamento necessário para a responsabilidade moral, então nossos oponentes estão corretos. Ou Deus não pode ser soberano, ou o homem não pode ser responsável. A resposta reformada é um fracasso e embaraço total.
Se você replica que um homem não é como um computador em muitos aspectos, eu concordo. Mas cuidado com isso, visto que pode tomar uma direção que você não deseja. Um homem poderia programar o computador, mas muitas coisas estão além do seu controle. Ele não criou os materiais que constituem o computador, e ele não controla a eletricidade e muitas outras coisas necessárias para o seu funcionamento. Se um homem é maior que um computador, então Deus é infinitamente maior que um programador. Assim, essa réplica apenas enfatiza o controle de Deus sobre o homem. A analogia sai pela culatra, mas não em favor dos reformados ou dos seus oponentes.
O mesmo se aplica quando se pergunta se Adão tinha liberdade antes da sua queda no pecado. Responder com o compatibilismo ou com o esquema “quatro estados do homem” é fugir do dilema. Se Adão era ou não livre do pecado para abster-se do pecado é secundário. Os oponentes estão perguntando se Adão era livre de Deus para abster-se do pecado. Se ele era livre de Deus, então como Deus é soberano? Se Adão não era livre de Deus, então por que ele era responsável? Se Deus criou Adão justo, e Adão agiu de acordo com a sua própria natureza, então como a queda foi possível?
Nessas perguntas os nossos oponentes estão completamente corretos, e os reformados estão completamente errados.
A resposta correta é simples: 1. Afirme a soberania divina, e que ela é exaustiva, estendendo-se a todas as coisas, mesmo pensamentos, motivos, desejos e ações dos homens; 2. Negue a liberdade humana, e admita que ela é de fato incoerente com e excluída pela soberania divina; 3. Negue que a liberdade humana seja o fundamento necessário para a responsabilidade moral; 4. Afirme que a soberania divina é o verdadeiro fundamento para a responsabilidade moral; isto é, os homens são responsáveis porque Deus os considera responsáveis, e ele requer nenhuma outra garantia senão Sua natureza e vontade; e 5. Afirme que a própria definição de justiça é dada pela natureza, decreto e ação de Deus, de forma que tudo o que ele decide e causa está por definição de acordo com a justiça; isto é, ele está sempre de acordo consigo mesmo.
Isso confronta diretamente a ideia de liberdade como pretendida pelos nossos oponentes, e em vez de ligá-la a outra coisa, nega-a peremptoriamente.
E então confronta sua preocupação mais profunda, que é a responsabilidade moral, e salienta que o seu pressuposto – que responsabilidade pressupõe liberdade, liberdade em qualquer sentido e por qualquer definição – é arbitrária e injustificada, e contrária tanto à Escritura como à razão.
Precisamos realmente de milhares de páginas escritas ao longo de centenas de anos para resolver isso? A relação do meu computador com a sua programação é moralmente irrelevante. Ele é minha propriedade. Posso usar o meu laptop como um frisbee se eu quiser. Como dono, está por definição dentro dos meus direitos fazer o que desejar com ele. Essa é a soma da teologia, e o fim da questão.
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