segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

A Necessidade do Novo Nascimento

Arthur W. Pink

Há dois principais obstáculos no caminho da salvação de qualquer dos descendentes caídos de Adão: a escravidão à culpa e à penalidade do pecado; a escravidão ao poder e à presença do pecado. Em outras palavras, eles estão a caminho do inferno e são desqualificados para entrar no céu. Esses obstáculos são, no que diz respeito aos homens, totalmente impossíveis de serem superados. Isso foi estabelecido por Cristo de forma inequívoca, quando seus discípulos perguntaram: “Quem pode ser salvo?” Ele respondeu: “Isto é impossível aos homens”. Criar um mundo é mais fácil para um pecador perdido do que salvar sua própria alma. Entretanto — louvado para sempre seja o nome do Senhor Jesus — Ele continuou, dizendo: “Para Deus tudo é possível” (Mt 19.25-26). Sim, problemas que frustram completamente a sabedoria humana podem ser resolvidos pela Onisciência. Tarefas que desafiam os maiores esforços dos homens são facilmente concluídas pela Onipotência. Em nenhuma outra situação esse fato é exemplificado de forma mais impressionante do que na salvação outorgada por Deus aos pecadores.

Conforme afirmamos no parágrafo anterior, duas coisas são absolutamente essenciais à salvação: livramento da culpa e da penalidade do pecado; livramento do poder e da presença do pecado. Uma é garantida pela obra medianeira1 de Cristo; a outra, pelas realizações eficazes do Espírito Santo. Uma é o resultado bendito do que o Senhor Jesus fez pelo povo de Deus; a outra, a gloriosa conseqüência do que o Espírito santo faz no povo de Deus...

Ora, um conhecimento vital e salvífico destas verdades divinas não pode ser adquirido por meio de estudo a respeito delas. Nenhum esforço na observação das Escrituras, nenhum esmero na análise dos tratados doutrinários mais corretos, nenhum exercício intelectual pode garantir o menor discernimento espiritual dessas verdades divinas. Na verdade, o pesquisador diligente pode obter um conhecimento natural, uma compreensão intelectual da mesma maneira como alguém que nasceu cego obtém uma noção das cores das flores ou da beleza de um pôr-do-sol. Pois, o homem natural não entende mais das coisas espirituais do que um cego entende das coisas naturais. Sim, a sua compreensão espiritual não é maior do que o entendimento de uma pessoa já falecida a respeito do que acontece no mundo que ela deixou. Por semelhante modo, nada menos que o poder divino pode trazer o coração orgulhoso a uma profunda compreensão deste fato humilhante. Somente quando Deus ilumina sobrenaturalmente a alma, esta se conscientiza da horrível escuridão espiritual em que, por natureza, vive.

A verdade do que acabou de ser dito é estabelecida pela afirmação clara e solene de 1 Coríntios 2.14: “Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente”. Um conhecimento externo da verdade divina, conforme revelada nas Escrituras, pode fascinar a mente e fornecer idéias para especulação e conversas. Contudo, a menos que Deus aplique a verdade à consciência e ao coração, na hora da morte esse conhecimento não será mais proveitoso do que as agradáveis imagens que recordamos de nossos sonhos, no momento em que acordamos. Quão terrível é pensar que multidões de cristãos professos acordarão no inferno, onde descobrirão que seu conhecimento da verdade divina não era mais substancial do que um sonho!

Embora seja verdade que o homem não alcança os caminhos do Senhor por meio de uma busca pessoal (Jó 11.7) e que os mistérios do reino de Deus são segredos selados, até que Ele se digne em desvendá-los à alma (Mt 13.11), também é verdade que Deus se agrada em transmitir luz celeste ao nosso entendimento obscurecido pelo pecado. É por essa razão que Ele encarrega seus servos de pregarem a Palavra e explicarem as Escrituras, de forma oral e escrita. Todavia, o trabalho deles não produzirá frutos eternos, se Deus não abençoar a semente plantada pelos servos e não lhe der o crescimento. Assim, não importa quão fiel, simples ou útil seja o sermão pregado ou o artigo escrito, a menos que o Espírito o aplique ao coração, o ouvinte ou o leitor não obtém benefício espiritual. Então, você não rogará humildemente que Deus abra seu coração para receber tudo que está de acordo com sua santa Palavra?

A regeneração não é uma mera mudança exterior, não é uma simples mudança de vida, nem esforçar-se para ter uma vida melhor. O novo nascimento é muito mais que caminhar até ao pastor e apertar-lhe a mão. É uma obra sobrenatural de Deus no espírito do homem, é uma maravilha transcendente. Todas as obras de Deus são maravilhosas. O mundo em que vivemos está cheio de coisas que nos surpreendem. O nascimento físico é uma maravilha; mas, de vários pontos de vista, o novo nascimento é mais extraordinário. É uma maravilha da graça, da sabedoria, do poder e da beleza divina. É um milagre realizado em nós, sobre o qual podemos estar pessoalmente conscientes. É uma maravilha eterna.

Visto que a regeneração é uma obra de Deus, ela envolve mistério. Todas as obras de Deus são envoltas em mistério insondável. A vida natural, em sua origem, essência e processos, confunde o mais cuidadoso pesquisador. Isto é muito mais verdadeiro no que diz respeito à vida espiritual. A existência e o ser de Deus transcende a compreensão finita. Então, como esperamos compreender o processo pelo qual nos tornamos seus filhos? O nosso Senhor mesmo declarou que o novo nascimento é um mistério: “O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem, nem para onde vai; assim é todo o que é nascido do Espírito” (Jo 3.8).

A regeneração é sobremodo solene. O novo nascimento é a linha divisória entre o céu e o inferno. Aos olhos de Deus há somente dois tipos de pessoas nesta terra: aquelas que estão mortas em pecados e aquelas que andam em novidade de vida. No âmbito físico, não há um estado entre a vida e a morte. Um homem ou está morto ou está vivo. A faísca de vida pode estar muito fraca, mas enquanto ela existe, a vida está presente. Se a faísca se apaga por completo, ainda que você vista o corpo com roupas bonitas, este não passa de um cadáver. Isso também acontece no âmbito espiritual. Ou somos santos ou pecadores, espiritualmente vivos ou espiritualmente mortos, filhos de Deus ou filhos do diabo. Em vista deste fato solene, quão significativa é a pergunta: “Eu nasci de novo?” Se a resposta é não, e se você morrer nesta condição, desejará nunca haver nascido.

   
1. A necessidade da regeneração jaz em nossa degeneração natural. Em conseqüência da queda de nossos primeiros pais, todos nascemos afastados da vida e da santidade de Deus, despojados de todas as perfeições com as quais a natureza do homem foi dotada no princípio. Ezequiel 16.4-6 mostra uma figura de nossa terrível situação espiritual, ao entrarmos neste mundo: lançados em pleno campo, devido ao nojo que causávamos, revolvendo-nos em nosso próprio sangue, incapazes de ajudar a nós mesmos. A “semelhança” com Deus (Gn 1.26), que no princípio estava gravada na alma do homem, foi apagada; uma aversão a Deus e um amor desordenado pela criatura tomou o seu lugar. A própria fonte de nossa natureza é poluída e jorra continuamente águas amargas; e, embora essas águas tomem vários rumos e sigam por vários canais, todas são salobras. Por essa razão o “sacrifício” dos perversos é abominável ao Senhor (Pv 15.8), e até a sua lavoura é “pecado” (Pv 21.4 - RC).

Há somente duas condições, e cada homem está incluído numa delas: a condição de vida espiritual e a de morte espiritual. Uma é a condição de justiça, a outra, de pecado; uma é salvação, a outra, condenação. Uma é inimizade, na qual o homem tem inclinações contrárias a Deus; a outra é amizade e comunhão, pelas quais os homens andam com Deus em obediência, não desejando ter intenções opostas à vontade dEle. Uma condição é chamada trevas, a outra, luz — “Pois, outrora [nos dias que precederam a regeneração, não só estáveis nas trevas, mas], éreis trevas, porém, agora, sois luz no Senhor” (Ef 5.8). Não há meio-termo entre essas duas condições: cada pessoa encontra-se em uma delas. Cada homem e cada mulher agora, na terra, ou é objeto do prazer de Deus ou de sua abominação. As mais bondosas e imponentes obras da carne não agradam a Deus. Entretanto, as menores faíscas que procedem daquilo que a graça iluminou são aceitáveis aos seus olhos.

Na Queda, o homem se tornou desqualificado para aquilo que é bom. Nascido em iniqüidade e concebido em pecado (Sl 51.5), o homem é um “transgressor desde o ventre materno” (Is 48.8). “Desviam-se os ímpios desde a sua concepção; nascem e já se desencaminham, proferindo mentiras” (Sl 58.3); “é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua mocidade” (Gn 8.21). Ele pode ser civilizado, educado, sofisticado e religioso, mas no coração ele é desesperadamente corrupto (Jr 17.9). Tudo que ele faz é desprezível aos olhos de Deus, porque nada que o homem faz procede do amor a Deus e do propósito de glorificá-Lo. “Não pode a árvore boa produzir frutos maus, nem a árvore má produzir frutos bons” (Mt 7.18). Enquanto não passam pelo novo nascimento, todos os homens são “reprovados para toda boa obra” (Tt 1.16).

Na Queda, o homem adquiriu uma indisposição para o que é bom. Todas as ações da sua vontade caída, por causa da ausência de um princípio correto do qual elas poderiam fluir e da ausência de um propósito correto para o qual elas se dirigiriam, são nada mais do que maldade e pecaminosidade. Deixe uma pessoa entregue a si mesma, retire dela todas as restrições impostas pela lei e pela ordem, e rapidamente ela descerá a um nível mais baixo do que o dos animais, como quase todos os missionários podem testificar. A natureza humana é melhor em terras civilizadas? Nem um pouco. Retire toda a camuflagem, e será descoberto que “como na água o rosto corresponde ao rosto, assim, o coração do homem, ao homem” (Pv 27.19). Por todo o mundo, isto é solenemente verdadeiro: “O pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar” (Rm 8.7). Em um dia por vir, Cristo apresentará a mesma acusação que proferiu quando esteve na terra: “Os homens amaram mais as trevas do que a luz” (Jo 3.19). Eles não O buscam a fim de terem “vida”.

Na Queda, o homem adquiriu uma incapacidade para fazer o que é bom. Ele é não somente desqualificado e indisposto, mas também incapaz de fazer o que é bom. Que homem pode dizer verdadeiramente que tem correspondido aos seus próprios ideais? Todos têm de reconhecer que existe uma estranha força interior que os subjuga e os dirige ao mal; este, por sua vez, em intensidades diferentes, vence os homens, apesar dos maiores esforços deles contra o mal. A despeito das amáveis exortações dos amigos, as fiéis advertências dos servos de Deus, os solenes exemplos de sofrimento, tristeza, enfermidade e morte, os quais vemos em toda parte, e a resolução da própria consciência, os homens ainda se rendem ao mal. “Os que estão na carne [em sua condição natural] não podem agradar a Deus” (Rm 8.8).

Assim, é evidente a necessidade de uma mudança radical e revolucionária no homem caído, antes que ele possa desfrutar de comunhão com o Deus três vezes santo... O homem deve ser enxertado entre os outros ramos, unido a Cristo, participante do poder de sua ressurreição. Sem isso, ele pode produzir frutos, mas não “para Deus”. Como alguém pode voltar-se para Deus sem um fundamento de mudança espiritual? Como alguém de natureza abominável e diabólica pode ser digno do Reino de Deus?

  
2. A necessidade da regeneração jaz na depravação total do homem. Cada membro da raça de adão é uma criatura caída, e cada parte de seu ser complexo foi corrompida pelo pecado. O coração do homem é “enganoso... mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto” (Jr 17.9). O entendimento dele é cegado por Satanás (2 Co 4.4) e obscurecido pelo pecado (Ef 4.18), de modo que os desígnios do homem são continuamente maus (Gn 6.5). Suas afeições são corrompidas, de modo que ele ama o que Deus odeia e odeia o que Deus ama. As intenções do homem são desprovidas de justiça (Rm 6.20) e inimigas de Deus (Rm 8.7). Ele não é justo (Rm 3.10), está debaixo da maldição da lei (Gl 3.10) e é cativo do diabo. De fato, sua condição é deplorável, e seu caso, desesperador. O homem não pode melhorar a si mesmo, porque é “fraco” (Rm 5.6). Ele não pode produzir sua própria salvação, pois nele não habita nenhum bem (Rm 7.18). Logo, o homem precisa nascer de Deus, “pois nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas o ser nova criatura” (Gl 6.15).

O homem é uma criatura caída. Isto não significa que apenas algumas poucas folhas murcharam, e sim que toda a árvore apodreceu, da raiz até aos ramos. Em cada ser humano existe algo que é radicalmente errado. A palavra radical vem de um vocábulo que, em latim, significa “a raiz”; então, quando dizemos que o homem está radicalmente errado, queremos dizer que há nele, no próprio cerne e fundamento de seu ser, aquilo que é intrinsecamente corrupto e mau. Os pecados são apenas o fruto, necessitam de uma raiz da qual brotem. Como inevitável conseqüência, inferimos que o homem precisa do auxílio de um Poder Maior para realizar uma mudança radical nele. Há somente Um que pode fazer isso. Deus criou o homem, e somente Ele pode recriá-lo. Esta é a razão da exigência: “Importa-vos nascer de novo” (Jo 3.7). O homem está espiritualmente morto e somente um poder grandioso pode trazê-lo à vida... [Portanto,] quanto mais pudermos compreender a extrema necessidade da regeneração e as várias razões por que ela é absolutamente essencial para que uma criatura caída torne-se apta para estar na presença do Deus três vezes santo, menos dificuldades encontraremos ao nos esforçarmos para chegar ao entendimento da natureza da regeneração...

Jesus Cristo veio a este mundo para glorificar a Deus e a Si mesmo por meio da redenção de um povo que seria dEle mesmo. Mas, que glória imaginamos Deus possui, e que glória atribuiríamos a Cristo, se não houvesse uma diferença fundamental entre o seu povo e o mundo? E que diferença pode haver entre estes dois grupos, senão uma mudança de coração? A partir disso, as fontes da vida (Pv 4.23), a transformação da natureza ou da disposição, são como uma nascente de onde procedem todas as outras diferenças — ovelhas e bodes têm naturezas diferentes. Toda a obra medianeira de Cristo tem em vista esse propósito. Seu ofício como sacerdote consiste em reconciliar e trazer seu povo para Deus; como profeta, Ele ensina-lhes o caminho; como rei, Ele opera neles essas diferenças e concede-lhes aquela beleza que é necessária para adequá-los à comunhão santa com o Deus três vezes santo. Assim Ele purifica “para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras” (Tt 2.14).

“Não sabeis que os injustos não herdarão o reino de Deus? Não vos enganeis” (1 Co 6.9). Multidões são enganadas, iludidas exatamente neste assunto de extrema importância. Deus tem avisado aos homens que “enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto” (Jr 17.9), mas poucos crêem que isso é verdade a respeito de si mesmos. Pelo contrário, dezenas de milhares de cristãos professos enchem-se de vã e presunçosa confiança de que está tudo bem com eles. Enganam-se com esperanças de misericórdia, enquanto vivem fazendo sua própria vontade e agradando a si mesmos. Imaginam que estão aptos para o céu, enquanto a cada dia estão mais preparados para o inferno. Sobre o Senhor Jesus está escrito: “Ele salvará o seu povo dos pecados deles” (Mt 1.21), e não nos pecados deles. O Senhor Jesus os salvará não só da penalidade, mas também do poder e da corrupção do pecado.

Será que as seguintes palavras não se aplicam a inúmeros cristãos: “Porque a transgressão o lisonjeia a seus olhos e lhe diz que a sua iniqüidade não há de ser descoberta, nem detestada” (Sl 36.2)? O principal artifício de Satanás é iludir as pessoas, fazendo-as acreditar que podem, com sucesso, associar o mundo com Deus, dar lugar à carne, enquanto desejam o Espírito, e assim “aproveitar ambos os mundos”. Mas Jesus enfatizou que “ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6.24).

   
3. A necessidade da regeneração jaz no fato de que o homem é inapto para Deus. Quando Nicodemos, um fariseu honrado e religioso, sim, um “mestre em Israel”, procurou Cristo, este lhe disse claramente que, “se alguém não nascer de novo”, não pode ver nem entrar no “reino de Deus” (Jo 3.3-5), nem no estado que o evangelho outorga neste mundo, nem no estado de glória, no céu. Ninguém pode entrar no reino espiritual, se não possui a natureza espiritual, que lhe concede o desejo por e a capacidade de deleitar-se nas coisas espirituais. O homem natural não possui essa natureza. E, muito mais do que isso, ele não pode nem mesmo discernir as coisas espirituais (1 Co 2.14)! Ele não tem amor por elas e não as deseja (Jo 3.19). Ele não as deseja porque a sua vontade é dominada pelas inclinações de sua carne (Ef 2.2-3). Portanto, antes que um homem possa entrar no reino espiritual, seu entendimento precisa ser iluminado sobrenaturalmente; seu coração, renovado; e sua vontade, libertada.

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