quarta-feira, 11 de janeiro de 2012
Uso e Abuso da História da Igreja
A história da Igreja Cristã, se corretamente considerada e usada, pode ser uma grande fonte de força, sabedoria e estabilidade para o cristão sério. Por outro lado, a história da Igreja, quando considerada erroneamente e usada de maneira equivocada, pode ser uma pedra de tropeço, uma ocasião de fraqueza e estagnação. Há três atitudes para com a história passada da Igreja que são erradas e que podem somente impedir a força verdadeira e o progresso no testemunho da Verdade. Essas três atitudes são: [1] Romantizando o passado; [2] Absolutizando o passado; e [3] Desdenhando o passado. Consideremos cada uma delas.
1. Romantizando o Passado
Romantizar o passado significa dar-lhe, em nosso pensamento, uma qualidade ideal ou perfeita que de fato ele não possui. Frequentemente isso envolve o anacronismo de ler o presente no passado, em vez de ver o passado e interpretá-lo como aquilo que ele realmente foi.
Dois exemplos dessa tendência vêm à mente. O primeiro consiste em romantizar a antiga Igreja Britânica ou Céltica — os primeiros séculos do cristianismo na Inglaterra e Irlanda — antes da invasão Anglo-Saxã da Inglaterra e antes do domínio do romanismo. Que a Antiga Igreja Britânica ou Cética era naqueles tempos tão pura quanto qualquer parte do mundo cristão, ou até mesmo mais pura que todas as outras, não questionamos. Mas a tentativa de alguns autores retratarem a Antiga Igreja Britânica como essencialmente calvinista na doutrina e presbiteriana na forma de governo, e em cima disso sustentar que ela preservou em alguns lugares uma continuidade ininterrupta da vida corporativa até a Reforma Protestante, ao longo de mil anos da Idade Média, só pode ser considerado como uma romantização da história sem fundamento.
Similarmente, o movimento valdense do norte da Itália tem sido romantizado, nem tanto pelos valdenses em si, mas pelos escritores em países de fala inglesa. A alegação que os valdenses tinham uma vida corporativa distinta quase similar, se não totalmente, ao período apostólico, e continuando claramente ao longo da Idade Média até os tempos de Martinho Lutero e a Reforma, e que durante esse longo período de quase um milênio e meio eles foram sempre distintos do catolicismo romano, é impossível de sustentar por evidência histórica válida. Antes, a evidência real indica que o movimento valdense originou-se no século 12, aproximadamente 400 anos antes de Martinho Lutero e a Reforma Protestante. Além disso, os valdenses não eram evangélicos ou protestantes no sentido apropriado desses termos. É possível — ou até mesmo provável — que eles acreditavam no sacerdócio universal dos crentes. É verdade que eles se opunham a alguns dos abusos e pretensões mais sérias da Igreja de Roma. Mas eles não sustentavam a ênfase e o cerne real do Protestantismo — a doutrina da justificação pela fé somente — de nenhuma maneira consistente ou apropriada, até que aprenderam-na com a Reforma Luterana no século 16. É ainda mais anti-histórico tentar manter que os valdenses medievais eram calvinistas e presbiterianos antes da Reforma. Que eles foram testemunhas notáveis e fieis da verdade de Deus não pode ser negado, e deveríamos honrar a sua memória por isso. Mas é uma romantização imprópria da história considerar esses santos como virtualmente calvinistas e presbiterianos numa Itália e França medieval.
2. Absolutizando o Passado
Absolutizar o passado significa considerar alguma época ou período no passado como ideal e normativo para todos os tempos vindouros. O tempo logo após a morte dos apóstolos, ou o tempo dos grandes Concílios da Igreja Primitiva, ou o tempo de Lutero, Knox e Calvino, ou o tempo da Segunda Reforma e a Assembleia de Westminster, são nostalgicamente considerados como “os velhos e bons dias” e a ideia mantida é a seguinte: que aquilo que a Igreja de nossos dias realmente precisa é voltar em espírito àqueles tempos e ali permanecer. Essa tendência surge de uma falta de perspectiva histórica, frequentemente combinada com um grau considerável de ignorância histórica, e uma falha em reconhecer a imperfeição e o relativismo de todas as realizações humanas, mesmo das melhores e mais nobres feitas em submissão a Deus.
Um exemplo dessa tendência é a noção não incomum de que os credos ou padrões oficiais de uma igreja são sacrossantos e que é algo errado e ímpio procurar alterá-los em algum detalhe, ou mesmo reexaminá-los à luz da Escritura. Essa absolutização do passado conflita inevitavelmente com a autoridade da Escritura como o padrão absoluto de fé e prática. Se há alguns elementos ou fases da história passada da Igreja que devem ser considerados como isentos do julgamento da Escritura, então a Bíblia não é mais a nossa única regra infalível de fé e prática. Se a Escritura é realmente a única regra infalível de fé e prática, então tudo na história da Igreja desde que o Novo Testamento foi finalizado está sujeito ao julgamento de Deus falando na Escritura. Deixamos de honrar a Confissão de Westminster se, por exemplo, atribuímos a ela uma autoridade que pertence somente à Escritura, e assim considerá-la e tratá-la como se fosse infalível. Mas a pessoa que considera ímpio ou profano dizer que tal credo pode ser alterado, sobre a base de um estudo adicional da Bíblia, está tratando esse credo como infalível e dando-lhe uma posição que pertence somente à Palavra de Deus. O presente escritor considera a Confissão de Fé de Westminster a melhor declaração da verdade cristã em forma de credo que já foi formulada. Mas ela não é a Palavra de Deus, e assim não é infalível. Ela foi composta por homens que eram de fato eruditos e piedosos, mas ainda sim falíveis em si mesmos e capazes de erro.
E, novamente, quando as pessoas consideram a Reforma como uma conquista fixa e consumada de uma vez por todas, elas estão absolutizando a história. A Reforma Protestante foi parte de um processo histórico.“Ecclesia reformata reformanda est”— a Igreja, tendo sido reformado, continua sendo reformada. Como a santificação, a reforma da Igreja é um processo sem nenhum ponto final na história.
3. Desdenhando o Passado
Desdenhar ou desprezar o passado é uma reação contra as tendências de romantização e absolutização. A pessoa que desdenha o passado falha em apreciar suas conquistas e valores reais. Isto é, ele fracassa em perceber o que Deus já fez na história passada de sua Igreja.
Alguém disse que “Ninguém jamais aprendeu algo da história exceto que ninguém aprende algo da história”. Em grande medida, vivemos numa era que superestima o presente e despreza o passado. Alguns podem dificilmente mencionar os covenanters escoceses do século 17 e suas lutas sem um sorriso de escárnio. As testemunhas e os mártires recebem um elogio parco por uma atitude que diz, em efeito, “Os covenanters foram importantes sem dúvida, mas…”
Todo verdadeiro progresso está construindo sobre fundamentos lançados no passado. Somente captando e apreciando o passado podemos ter uma atitude verdadeiramente válida para com o presente, e somente assim podemos construir um futuro sólido. A pessoa que diz “História é bobagem” está desonrando a Deus, que por sua obra de criação e providência fez a história aquilo que ela é.
Em nossos dias esse grande monumento histórico da Fé Reformada — a Confissão de Fé de Westminster — foi posto de lado como uma peça de museu por grande parte do corpo presbiteriano na América, e uma “nova confissão” a substituiu como o padrão denominacional realmente em vigor. E essa “nova confissão” é na verdade uma rejeição de grande parte da verdade alcançada e testemunhada na Confissão de Westminster histórica. Isso é verdadeiramente um desdenhar da história.
Não é incomum encontrar pessoas com uma atitude de desdém para com os covenanters escoceses históricos e os antigos pactos escoceses. Não fomos salvos pela história dos covenanters, mas sim pela fé em Jesus Cristo. Mas deixamos de honrar ao Senhor se desprezamos o que ele fez em e por meio do seu povo nos tempos passados.
A atitude desdenhosa tem suas raízes no orgulho — o orgulho da ignorância. Alguém disse que há três tipos de orgulho: orgulho de raça, orgulho de rosto e orgulho de graça,** e esse orgulho de graça é o pior dos três. Mas sem dúvida podemos classificar com esses o orgulho da ignorância como uma das piores formas de orgulho. Há pessoas que de fato se gloriam em sua vergonha, que se orgulham verdadeiramente de que são ignorantes de teologia e história da igreja.
Não somos os primeiros cristãos inteligentes ou fieis que já viveram. Cristo, por meio do seu Espírito, sempre esteve ativo, trabalhando ao longo da história passada de sua Igreja. Prestemos atenção à injunção bíblica de “provar todas as coisas e reter o que é bom”. Não romantizemos o passado, não absolutizemos o passado e não desprezemos o passado. Antes, que possamos avaliá-lo com justiça e valorizá-lo sabiamente, para a honra e glória de Deus.
NOTAS:
* Covenanters: Os membros da Igreja da Escócia que assinaram o Pacto (Covenant) Nacional Escocês de 1638, que os obrigava a manter a Igreja da Escócia como foi organizada durante a Reforma, isto é, presbiteriana. Eles participaram em combate armado em obediência ao pacto assinado.
** O autor usa um jogo de palavras aqui: race, face, grace.
Fonte: Ordained Servant, vol. 5, no. 2 (Abril 1996).
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto – 03 de janeiro de 2011.
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